Democracia, uma lição que precisamos aprender

É nosso desafio afirmar a democracia, tanto a representativa (que, apesar de tantas decepções, ainda merece nosso voto e nossa consciência) quanto a democracia direta, através da nossa participação e do apoio aos movimentos sociais organizados. Sobre este tema da nossa cidadania, conversamos com Ana Maria Prestes Rabelo.

Mundo Jovem: A democracia representativa e formal fracassou? É insuficiente?

Ana Maria Prestes: A democracia representativa é fruto de uma concepção liberal que sempre teve como objetivo manter o poder político nas mãos das elites e pouco acessível à maioria da população. Como ideário, ela não fracassou, visto que se espalhou como modelo hegemônico e tem sido utilizada como mote para justificar as campanhas belicistas do imperialismo no período recente. Por outro lado, sua insuficiência é flagrante e muitas têm sido as iniciativas de introduzir elementos de democracia direta, deliberativa e participativa nos países que conseguem projetar programas alternativos ao liberalismo em seus governos.



A questão fundamental é que ao mesmo tempo em que o mundo vive a difusão do modelo liberal de democracia representativa, apresentada pela globalização hegemônica como a melhor forma de organização das sociedades humanas, as pessoas se veem cada vez mais afastadas da possibilidade de opinar e influir em decisões que atingem diretamente suas vidas. O vácuo, ou o déficit democrático criado entre o que se discute e aprova nos encontros multilaterais ou globais, por exemplo, e o entendimento e a opinião dos cidadãos nacionais sobre tais decisões, gerou um espaço político a ser preenchido. Esta foi uma condição essencial para o surgimento de encontros como o Fórum Social Mundial.



Mundo Jovem: Qual o papel e a importância dos movimentos sociais para a democracia?

Ana Maria Prestes: Os movimentos sociais (grupos, associações e organizações não governamentais que se articulam coletivamente em torno de uma luta específica) ajudam a demonstrar os pontos falhos da democracia representativa de modelo elitista que cirscunscreve a participação política ao processo de votação eleitoral. No período que separa uma eleição da outra, a maioria da população fica privada de interferir no andamento das políticas públicas e é exatamente através dos movimentos sociais que as demandas vão surgir e se expressar para o conjunto da sociedade.



Movimentos sociais fortes são fundamentais para que as decisões políticas sejam mais democráticas e tenham consonância com as demandas sociais. A cultura do associativismo e da solidariedade social presente nos movimentos sociais é fundamental para pressionar a ampliação do espaço público nas democracias liberais que tendem à privatização do Estado e do escopo de atuação civil. No Brasil, os movimentos sociais tiveram, no período recente, um papel importantíssimo no estabelecimento de novas relações entre o Estado e a sociedade no que tange, por exemplo, às relações de gênero, etnia, uso do espaço público e vários outros aspectos que democratizam esta relação.



Mundo Jovem: Onde começa e como deve acontecer o estímulo e a formação para a participação cidadã?

Ana Maria Prestes: De preferência o mais cedo possível. Na família, na escola, nas primeiras experiências de relações sociais das crianças e dos jovens. O Estado precisa estar aberto à participação cidadã, as escolas devem estar preparadas para formar as crianças e os jovens em uma cultura participativa e a sociedade deve praticar esta cultura de forma ativa. As pessoas participam se percebem que há sentido nesta participação, que sua ação interfere na dinâmica social, e este é um bom termômetro do grau de democracia das sociedades.



Mundo Jovem: Em que setores a população brasileira se organiza? Que experiências são mais significativas?

Ana Maria Prestes: A sociedade brasileira tem uma história muito rica de organização e luta. Desde as lutas abolicionistas às recentes mobilizações para a democratização da mídia. O Brasil é referência mundial em organização pela reforma agrária, pelos direitos das mulheres, pelo fim da discriminação racial, pelos direitos da juventude e dos estudantes, pelo direito à moradia, pela ampla justiça social. No período recente, nosso país também se tornou referência pela implementação de alguns mecanismos de democracia participativa e deliberativa, como os orçamentos participativos, o funcionamento de conselhos setoriais e a realização de conferências temáticas.



Mundo Jovem: Por que a participação social é tão pequena? Falta envolvimento mais massivo?

Ana Maria Prestes: De fato falta um envolvimento mais massivo, mas a questão é que as formas de participação social também mudaram. As maiores mobilizações antiglobalização neoliberal foram organizadas por internet e mensagens de celular. Isso demonstra uma mudança no padrão de participação e envolvimento em campanhas, especialmente dos jovens. As pessoas só participam daquilo que faz algum sentido para elas. É por isso que os setores que mais mobilizam são os que apresentam maior déficit de resposta do poder público. Ao mesmo tempo, as pessoas têm sido estimuladas a práticas cada vez mais individualizadas. As ações coletivas são tachadas como perda de tempo e energia, a concepção liberal que ainda viceja na nossa sociedade prega as conquistas pelo esforço individual e, invariavelmente, com prejuízo da conquista do outro. As conquistas coletivas são vistas como práticas ultrapassadas e antiquadas. O mérito está em vencer sozinho e de preferência desqualificando os demais.



Mundo Jovem: A experiência dos fóruns sociais mundiais (FSM) contribui para o avanço da democracia?

Ana Maria Prestes: Certamente. Os primeiros FSM, realizados em Porto Alegre, ampliaram para o mundo o exemplo de uma experiência importante de democracia participativa, que é o orçamento participativo. O acesso a esta experiência levou o debate sobre modelos de democracia participativa para vários países do mundo. Por outro lado, a própria existência do FSM é um questionamento à validade das decisões tomadas em âmbito transnacional sem consulta às populações nacionais. É um questionamento à democracia na era da globalização.



O FSM nasce em um momento em que os estados nacionais, de uma forma geral, sofrem uma influência cada vez maior da colaboração internacional em áreas essenciais, como defesa ou comunicação, e do aumento da integração política com outros estados através da consolidação de novos corpos políticos, como a União Europeia ou a OMC. Essa situação, ao mesmo tempo em que amplia a atuação do Estado na arena internacional, limita seu poder de ação interna e seu poder de dar respostas, oportunamente ou não, às demandas sociais nacionais. O FSM abre uma série de discussões sobre os procedimentos democráticos do século 21 e de um novo tipo de participação política de cidadãos e organizações antes restritos à atuação local.



Mundo Jovem: Vivemos um tempo de restrição/criminalização dos movimentos sociais. Por quê? A quem interessa?

Ana Maria Prestes: Após um período de descenso dos movimentos, especialmente no pósqueda do Leste Europeu e apogeu do neoliberalismo, os movimentos sociais voltaram à cena. Com esse retorno, surgiram eventos importantes como a derrota da rodada do milênio da OMC em Seattle (em 1999), o Fórum Social Mundial e uma importante aliança entre movimentos e governos progressistas em vários países da América Latina, o que atingiu em cheio a hegemonia imperialista norte-americana. A criminalização dos movimentos sociais vem como uma resposta dos setores que perderam espaço com este ascenso dos movimentos sociais e de um ideário antineoliberal. Ela vem também após o 11 de setembro e com os dois governos da era Bush, que associaram qualquer tipo de manifestação política antineoliberal a práticas terroristas, na busca de justificar a ofensiva aos movimentos. No Brasil, nos últimos anos, foi flagrante a ostensiva criminalização dos movimentos sociais no sul do país, em particular no Rio Grande do Sul, com a ação do governo em defesa das empr sas de celulose e em prejuízo dos movimentos pela reforma agrária e ambientais.



Mundo Jovem: A escola poderia capacitar os jovens para a participação? Como poderia fazer?

Ana Maria Prestes: Não só poderia, como deveria. O ambiente escolar é o ideal para iniciar os jovens nas discussões sobre os procedimentos de tomada de decisão de forma democrática em todos os âmbitos da vida, não somente no político. A democracia não deve ser ensinada apenas em disciplinas específicas como a Sociologia ou a História, mas vivenciada na escola, seja no processo de escolha do diretor ou do uso da quadra esportiva, de modo que os jovens possam projetar estas experiências para os outros campos da vida, fora da escola.


Ana Maria Prestes Rabelo,

Mestre em Ciência Política, membro do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial, de Belo Horizonte, MG. Endereço eletrônico: amprestes@hotmail.com

 

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