Socialismo e política social

Por Gilvan Rocha



O nível de confusão política, hoje, chegou a um patamar extremamente preocupante após esses noventa anos de hegemonia stalinista, tão pródigo em distorções, mitos, fantasias, ilusões e dogmas. Repare-se no costumeiro embaralhamento que se faz entre política social e socialismo. Recentemente conversando com um companheiro da velha-guarda, “marxista-leninista-trotskista” de quatro costados, em defesa do governo Lula, ele levantou o seguinte argumento: “Só sei que o povo está comendo três vezes por dia, está comprando e até andando de avião, coisas que não existiam nos governos anteriores e isso é um avanço”.



Observa-se nessa afirmação uma profunda confusão entre as chamadas políticas sociais que podem minimizar os efeitos da pobreza e o socialismo que objetiva construir a igualdade social. É de bom alvitre atentar para o fato de que o capitalismo sempre fez uso de políticas sociais em favor dos seus objetivos. O caso mais elucidativo é o dos chamados Estados de Bem Estar Social que criaram uma rede de proteção, de forma a diminuir a gravidade dos problemas produzidos pela desigualdade.



Ao mesmo tempo em que o capitalismo, em poucos países, particularmente na Europa Ocidental, levou avante uma política assistencialista, ele soube com notável competência capitalizar politicamente, trazendo a massa do povo para a órbita de sua influência político-ideológica. Dessa maneira, evitou possíveis simpatias das massas populares pelo socialismo que dizia estar se construindo no Leste Europeu. Tal manobra serviu ontem, e serve hoje, para consolidação dos interesses do sistema vigente.



Ao invés de se imaginar que políticas sociais, políticas assistencialistas, têm algo em comum com o socialismo, deve-se ter em conta que é justamente o contrário. As políticas assistencialistas têm se prestado a minimizar as tensões sociais, ao mesmo tempo em que produzem uma massa popular disposta a emprestar apoio político aos “seus benfeitores”.



O lugar onde as melhorias das condições de vida dos trabalhadores, foi melhor manejado pelo capitalismo, deu-se exatamente nos Estados Unidos da América. Ali, os capitalistas souberam tornar a massa de trabalhadores em compradores dos seus produtos, quando conferiu-lhes salários razoáveis. Ao mesmo tempo em que criava um forte mercado interno consumidor dos seus produtos e com isso usufruía vultosos lucros, eles promoviam um trabalho eficiente de cooptação política dos trabalhadores, afastando-os de qualquer influência de caráter socialista, ou melhor, anticapitalista. Promoviam com êxito o seu discurso de que o capitalismo é capaz de oferecer ao povo segurança e bem estar, além de liberdade política, elementos não oferecidos pelo então chamado “mundo socialista”.



Os países nórdicos foram transformados em vitrines do capitalismo internacional. Eram mostrados como exemplos de que o sistema capitalista era viável, pois ali se dava testemunho de uma bem sucedida política de amparo social. Não se dizia que se tratava de uma exceção, algo localizado, de uma experiência que não podia ser generalizada no âmbito do sistema capitalista. Em outras palavras, o mundo capitalista não podia ser transformado em uma federação de noruegas.



Voltando para o Brasil, um pouco de acuidade poderia levar a que os nossos “marxistas-leninistas-trotskistas” dessem conta de que a política trabalhista implementada pelo Sr. Getulio Vargas foi usada com extremo sucesso para enquadrar a massa de trabalhadores nos limites da ordem vigente. Por conta do êxito da política getulista, ele, Getulio Vargas, foi tido pela maioria das massas trabalhadoras do Brasil como “o pai dos pobres”. Isso, do ponto de vista do socialismo, representou grandes prejuízos. Embora o trabalhismo representasse melhorias nas relações de trabalho, não representava avanço nenhum, rumo ao verdadeiro objetivo histórico dos explorados que é a libertação dos grilhões do capitalismo.



Não esqueçamos que, no período da ditadura imposta no ano de 1964, foi instituído o FUNRURAL, uma política social de imediatas consequências para as massas trabalhadoras do campo, pois dele emanou a aposentadoria desses trabalhadores e isso era uma medida que fazia amenizar a miséria.



É digno de lembrança também que o slogan do governo Sarney era: “Tudo pelo social”. O “amável” oligarca maranhense, José Sarney, tinha o propósito de implementar políticas sociais com o objetivo de promover certo nível de estabilidade e poder aliciar politicamente as massas populares. Neste sentido, chegou a levar à prática a “política do leite” com seus tickets que proporcionavam a distribuição gratuita, desse produto, para crianças carentes.



O governo de Fernando Henrique Cardoso também trilhou o mesmo caminho, criando o “Bolsa Escola” e outros programas de caráter social. Chegando ao governo, Lula manteve intocada a política econômica e financeira de Itamar e FHC, cujo tripé é o controle rigoroso da inflação, o câmbio flutuante e a política de responsabilidade fiscal. Por outro lado, ele, em melhores condições, ampliou as políticas sociais, tendo como “carro chefe” o Bolsa Família.



O sucesso do programa Bolsa Família prestou-se a duas finalidades. A primeira delas, foi a de reduzir possíveis tensões sociais e, assim, garantir o máximo de tranquilidade ao sistema e, por conseguinte, aos seus senhores. A segunda finalidade foi a de promover um amplo trabalho de cooptação política, tornando os beneficiários desse programa em fieis eleitores do governo.



Em cima do sucesso das políticas sociais, montou-se um discurso de que o capitalismo é viável, desde que administrado com competência e vontade política. Ora, este discurso é falso. Ele enseja que os inadvertidos imaginem que, de forma gradual e crescente, chegaremos à igualdade social. Isso é um profundo engano, pois, enquanto a massa dos desvalidos, a custos módicos, é contemplada com migalhas, a grande burguesia “nunca antes na história desse país”, usufruiu tantos ganhos.



Na avaliação do governo Lula, não podemos deixar de assinalar que, no propósito de assegurar tranquilidade ao capital, ele levou adiante uma política de envolvimento das centrais sindicais e estudantis, assim como dos movimentos populares, ministrando propinas e, dessa forma, engessando a participação política das massas.



Por sua vez, nunca é demais dizer que a confusão feita entre políticas sociais e socialismo é uma postura que, por seus equívocos, favorece tão somente a manutenção da ordem capitalista, uma vez que o objetivo histórico das massas trabalhadoras e dos excluídos, não é apenas o de ter direito a comer três vezes ao dia, senão abolir, por completo, a desigualdade. Isso, no entanto, estamos impossibilitados de realizar, seja no Brasil, seja alhures, por via de políticas de caráter assistencialista, bem ao gosto das doutrinas cristãs possuídas do propósito de administrar a pobreza e a miséria e nunca erradicá-las.



Gilvan Rocha é Presidente do Centro de Atividades e Estudos Políticos - CAEP.


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